O mundo não será o mesmo após a pandemia instaurada pelo COVID-19. Os reflexos que o inimigo invisível trouxe abalaram inúmeras vertentes da sociedade, não sendo diferente com as relações de trabalho.
A calamidade pública decretada através do Decreto Legislativo nº 6 de 20/03/2020 e a necessidade de isolamento social como única opção de contenção do vírus, orientada pela Organização Mundial de Saúde, trouxe para as empresas o desafio de uma readequação de suas atividades.
Adaptar-se nunca se fez tão necessário em razão da potente recessão econômica que o Coronavírus indicava. As empresas foram obrigadas a repensar seus modelos de negócios, abraçando a tecnologia e se reestruturando. As que não conseguiram fazer isso, provavelmente, sucumbiram nesse período.
Pautados nos deveres fundamentais de cooperação, solidariedade e de “ficar em casa”, inúmeros empregadores implementaram (ou intensificaram) o trabalho em home office para que a atividade empresarial fosse viabilizada em meio a necessidade de portas cerradas.
Se a globalização, as “novas tecnologias” e as descentralizações laborais já haviam fomentado essa espécie de teletrabalho, a pandemia mostrou que essa realidade veio para ficar até mesmo para quem nunca tinha pensado na possibilidade.
A relação de trabalho foi uma das vertentes mais afetadas pela pandemia do Covid-19, razão pela qual a atividade legiferante trabalhista nesse período foi intensa.
Especificamente ao que se propõe esse trabalho, a MP 927/2020, que vigeu apenas de 22/03/2020 a 19/07/2020 em razão da sua caducidade, trouxe o fomento com algumas flexibilizações ao teletrabalho já previsto no art. 75-B da CLT, sendo considerado como uma medida efetiva para enfrentamento do estado de calamidade pública.
Se para alguns, a exemplo de locadores de imóveis, os efeitos patrimoniais da pandemia se mostraram devastadores, para outros a percepção foi deveras relevante: por que manter o custo de uma estrutura física quando se pode alocar os funcionários em suas próprias casas de lá trabalhando?
Fato é que o transcurso de mais de um ano demonstrou que o trabalho em home office não é mais uma estratégia da pandemia, mas uma realidade a ser adotada no período pós pandêmico.
Inúmeros empregadores já repensam seus espaços físicos, aferindo que seus custos operacionais já não precisam ser os mesmos de outrora.
No entanto, o que parece uma maravilha para o empresariado, mormente no que tange à supressão de custos, pode não ser uma boa prática, ensejando em reflexos de precarização das relações de trabalho a longo prazo.
A tecnologia, que deveria ser uma fiel aliada nas transformações do mundo, pode colocar em xeque a higidez física, mental e emocional dos trabalhadores.
O home office acaba dificultando a necessidade de desconexão do empregado com seu trabalho, pois há uma confusão “natural” espaço/tempo em razão da residência se tornar local de labor.
A “divisão” de tempo da rotina do trabalho presencial, em que, na maioria das vezes, há horário de entrar e sair, se transforma num almoço na frente do computador, que ora se clica em alguma rede social, ora se clica nas plataformas de trabalho.
Parece confortável (e normal) estar em casa e tomar café da manhã enquanto realiza uma reunião ou estar com o filho no colo enquanto faz uma audiência.
A análise de impacto das tecnologias nas relações de trabalho tornou-se ainda mais relevante com a pandemia. Lá se foram meses e meses com inúmeras adaptações tecnológicas nos vínculos empregatícios.
Foi comum nesse período pandêmico ver um mesmo empregado realizando duas reuniões ao mesmo tempo ou realizando afazeres profissionais ao mesmo tempo em que cuida de alguma tarefa doméstica.
Foi mais comum ainda a marcação de compromissos profissionais em horários extra jornada ou o alongamento “natural” da jornada, afinal estavam todos do conforto de suas casas.
É necessário iniciar uma reflexão sobre até que ponto tais circunstâncias podem refletir na saúde e nos projetos de vida do empregado a longo prazo, sejam eles pessoais ou familiares, no cenário pós pandemia.
Talvez seja hora de pensar em ressignificar as relações de trabalho que outrora foram dignificadas a muito custo.
O desafio é buscar uma harmonização para que o homem não sucumba perante a tecnologia, mas sim que esta esteja a serviço do homem. Deve-se refletir se a utilização das tecnologias não pode ser o próprio meio de limitação e controle das jornadas.
O que se verifica no mercado atualmente é que os dispositivos e sistemas de tecnologia são altamente sofisticados, capazes, muitas vezes, de substituir o próprio trabalho humano.
Qual o alcance e capacidade desses dispositivos? Esses instrumentos podem sim atuar também no controle efetivo das jornadas colaborando, assim, para a observância da desconexão dos trabalhadores.
Adaptar-se não significa tão somente utilizar das tecnologias do jeito que elas chegaram até à sociedade. É utilizá-la de forma consciente e também como meio de consecução de direitos fundamentais.
Algumas ideias simples e pouco custosas: sistemas que só permitem o login do empregado no início da sua jornada e que “deslogam” o trabalhador quando do término da sua jornada.
Isso independente de ter uma tarefa em aberto, bloqueio de celular, e-mail e grupos de Whatsapp corporativos nos horários entre jornadas, intrajornadas e dias de descanso.
Outras ideias podem perpassar pela sofisticação de alguns dispositivos que tenham um custo agregado ao empregador, mas se tornam deveras relevantes neste aspecto. Não seria, em verdade, um custo, mas sim um investimento na saúde organizacional.
Se repartir a rotina pessoal da de trabalho é naturalmente difícil em regime de home office por conta do excesso de conexão provocado pela tecnologia, usar a própria tecnologia como vetor limitante neste viés torna-se extremamente lógico, produtivo e econômico com o fim precípuo de garantir a saúde dos trabalhadores.